O ataque do governo federal aos assentamentos na Ilha do Xingu, no Pará

Foto: Cargill/Divulgação

POR PAULO WEYL E TATIANE VASCONCELOS

Os assentamentos ambientalmente diferenciados são uma conquista dos movimentos sociais e seringalistas, onde sobressai a garantia do território aos povos tradicionais. Configuram reconhecimento jurídico do Estado, em consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Asseguram o desenvolvimento de atividades econômicas socialmente justas e ecologicamente sustentáveis, com o diferencial respeito ao modo de vida dos povos, a garantia do uso comum da terra e a titulação coletiva do bem.

O Incra criou 413 Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAEs), espécie desses assentamentos, beneficiando 113.774 famílias em uma área e 18.088.170 hectares.

Esse direito sofre forte assédio do governo federal, que atua para liberar essas e outras extensas áreas como ativos ao capital. Para esse fim, fomenta a ação de conglomerados econômicos e a implantação de projetos de agricultura extensiva, minerários e de logística, como portos e ferrovias, que colocam em risco o direito ao meio ambiente equilibrado e inviabilizam o direito dessas comunidades ao seu território.

O governo não respeita os atos adotados pelo Estado brasileiro, em obediência ao direito interno e a instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da OIT. É como se os atos do Estado não tivessem consequência jurídica, como se não constituíssem direito subjetivo das comunidades e como se não impusessem limites ao poder e exigências aos órgãos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Secretaria do Patrimônio da União (SPU), em especial.

O assédio se dá por duas vias articuladas: primeiro, cria embaraços e nega a execução dos atos formais com vistas à titulação dessas áreas, em respeito ao título configurado nas Portarias de Criação dos Projetos, publicados no Diário Oficial da União; por outro lado, promove a desafetação de áreas dos PAEs, com a concessão de autorização de uso/aforamento de áreas incidentes sobre esses Projetos, com o fim do desenvolvimento de atividades econômicas incompatíveis com os usos estabelecidos PAEs.

Em algumas palavras, fomenta a insegurança jurídica, desarticula os projetos, precariza a Portaria de criação dos Projetos, promove a desterritorialização de famílias e, enfim, fomenta o conflito. Essa sórdida combinação de fatores que lamentavelmente expõem o direito das comunidades em assentamentos ambientalmente diferenciados, em especial 113.774 famílias os PAEs.

É o caso enfrentado pelas 188 famílias que integram o PAE Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Baia do Capim, no Município de Abaetetuba, que tem a quase totalidade de seu território reivindicada pela Cargill e a concessão de aforamento de cerca de 400 hectares, já realizada pelo SPU, o que vem sendo questionado em Ação Civil Pública promovida pela CARITAS Regional Norte II, ação promovida pelo Doutor Paulo Weyl, responsável pela área de Direitos Humanos do Escritório Weyl, Freitas e Kawhage David, Vieira e Botelho, Advogados Associados.

A Ação Civil Pública

O ponto fulcral da ação jurídica ajuizada é o de assegurar a integralidade, vigência e eficácia da Portaria do INCRA que institui o Projeto e reconhece do território (posse/propriedade).

Particularmente, esta Ação Civil Pública pretende anular a desafetação/constituição de aforamento da área de 358,88 hectares em favor de Brick Logística Ltda. posteriormente substituída, pela empresa CARGILL S.A, através do processo administrativo nº 04957.001182/2018-25, incidentes sobre o Projeto Agroextrativista Santo Afonso.

Portanto, visa a proteção jurídica do território pertencentes aos povos e comunidades tradicionais que vivem na ilha do Xingu, localizado no município de Abaetetuba, no Pará, principalmente às comunidades que residem no Projeto Agroextrativista Santo Afonso.

A ACP comporta três blocos de argumentos. Primeiro, a legalidade do Projeto Agroextrativista, que a Portaria de sua constituição equivale a um reconhecimento do Estado daquele território tradicional e, por consequência, forma direitos subjetivos das famílias beneficiadas.

Em outra linha argumentativa, a ACP explora circunstancias extremamente graves que cercam a reivindicação da Brick Logística e da Cargill sobre aquela área. De fato, o exame de algumas irregularidades não pode ser afastado, sob pena de uma mácula irreparável e inaceitável em se tratando de pequenas ou grandes empresas, cidadãos comuns ou autoridades, ricos ou pobres.

A cadeia dominial da área reivindicada não demonstra possuir lastro real. Ademais, o título cedido pela Prefeitura para dar ares de regularidade à posse é uma aberração jurídica, uma vez que este ente não detém jurisdição sobre a área e não possui competência para conceder direito real sobre o bem da União.

Em uma terceira linha, atacamos o Processo Administrativo de Aforamento na SPU. Um processo precário, que sequer examina a regularidade dos títulos, a fragilidade da cadeia dominial alegada e, especialmente, o título de traspasse passado pelo município de Abaetetuba concedendo o direito sobre terras da União. Enfim, não há exame documental!

Mesmo na hipótese da revisão dos atos da administração, em face dos princípios constitucionais da eficiência, a legalidade, a motivação, a moralidade, dentre outros, não parece razoável que a administração desconstitua seus atos sem uma linha de motivação e ainda mais em um meio a evidentes falhas procedimentais como evidencia-se no corpo da ACP.

Ademais, o aforamento incide em violação dos direitos de povos e comunidades tradicionais ao subtrair o direito reconhecido na Portaria 37 do INCRA, bem como, da Convenção 169 da OIT referendada pelo Brasil e consolidada no Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019, que indica os atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT, conforme art. 2º, item LXXXll, Anexo LXXXII.

A ACP não envolve apenas um Projeto de Assentamento Agroextrativista. De certa maneira, reflete a situação de insegurança imposta à totalidade dos 413 PAEs, bem como a imensa maioria dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável e dos Projetos de Assentamento Florestal. Essa circunstância configura um caráter singular da ACP e que atrairá a atenção de vários atores, sobretudo do agronegócio e mineral e exigirá dos movimentos sociais o atento acompanhamento.

Publicado originalmente na CARTA CAPITAL

O papel central da ANPD na disseminação da cultura de proteção de dados

Por Débora Sirotheau e Paula Ferraz

Desde a década de 80, em decorrência dos avanços tecnológicos que permitiram o processamento automatizado dos dados, a Europa percebeu a necessidade de assegurar o direito à proteção dos dados pessoais, como um direito autônomo ao direito à privacidade. Dessa forma, no que tange ao tratamento automatizado de dados pessoais, a Convenção 108, de 28 de janeiro de 1981, portanto, considerou a proteção de dados como um direito fundamental [1].

Na década seguinte, os países-membros do bloco econômico europeu transpuseram para as suas legislações nacionais o conteúdo previsto na Diretiva 95/46/CE [2], que versava sobre a proteção de dados pessoais. Anos mais tarde, após intensos debates acerca da necessidade de uma norma jurídica a ser aplicada de forma uniforme a todos os Estados-membros da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia aprovaram, em 2016, o Regulamento Geral sobre Proteção de Dados (General Data Protection Regulation — GDPR) [3], com aplicação supranacional em 30 jurisdições: os atuais 27 Estados-membros da União Europeia, além de mais três países: Noruega, Islândia e Liechtenstein, que compõem a European Economic Area (EEA).

Assim, três meses após a eficácia plena do GDPR (25/5/2018), a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais — Lei 13.709/18) foi promulgada. Com a aprovação da LGPD, o Brasil, passou a integrar o rol dos países com legislações em proteção de dados.

É indiscutível que a pandemia (Covid-19) nos impôs uma nova realidade: passamos a estudar, trabalhar, realizar compras, consultas médicas e tantas outras atividades de forma virtual. Estudos apontam que o uso da internet se intensificou nesse período [4], ou seja, apesar de milhares de pessoas terem sido incluídas digitalmente, não houve tempo de investir na necessária educação digital e conscientização sobre a importância da proteção de dados pessoais, motivo pelo qual propiciou um terreno bastante fértil para incidentes de segurança, com violação de milhares de dados pessoais, que passaram a ser noticiados com regularidade pela mídia.

Após o transcurso de mais de um ano da entrada em vigor da LGPD — 18/9/20 —, e já com a vigência plena de todos os seus artigos, percebe-se que ainda há, por grande parte da sociedade brasileira, um completo desconhecimento acerca dessa legislação e, consequentemente, dos direitos nela assegurados.

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) é um órgão da Administração Pública federal, integrante da Presidência da República, responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD no território nacional (artigo 5, XIX, LGPD).

Apesar da sua estrutura organizacional ter sido constituída em agosto de 2020, através do Decreto 10.474 [5], só entrou em vigor no dia 6 de novembro do ano passado, data da nomeação do diretor-presidente da ANPD. [6]

Assim, o fato de a ANPD ter sido constituída após o início da vigência da LGPD, sem dúvida, atrasou a criação e o fortalecimento da cultura de proteção de dados em nosso país, principalmente se considerarmos que esse é um direito novo no nosso ordenamento jurídico e que antes tínhamos apenas leis esparsas, que tangenciavam o tema.

Nesse sentido, a cooperação com autoridades de proteção de dados de outros países, bem como a articulação com autoridades reguladoras públicas (artigo 55-J, IX e XXIII, da LGPD), que, inclusive, é uma das suas atribuições legais, será determinante para a construção de um sistema nacional de proteção de dados com coesão e segurança jurídica para toda a sociedade.

Para avançar, será preciso “furar a bolha” e adentrar em outros espaços para falar da importância da proteção de dados para que todos saibam que os nossos dados pessoais merecem ser protegidos contra qualquer uso inadequado, pois eles são uma extensão da nossa própria personalidade e, portanto, devemos ter o controle sobre o seu uso.

É fundamental formarmos cidadãos digitais, o que inclui investir na educação de nossas crianças e de nossos jovens — que vivenciam a atual “sociedade do espetáculo” [7] —, tão conectados nesse mundo digital, alvos fáceis da economia da atenção e suscetíveis a todos os riscos decorrentes disso.

Os acordos de cooperação técnica já firmados com Senacom, Cade e Nic.br são muito importantes e demonstram que a ANPD, ciente de seu papel central na construção dessa cultura, está se articulando e buscando a cooperação de outros órgãos estratégicos para o atingimento desse objetivo.

Também há a previsão para que a ANPD celebre um acordo de cooperação técnica com o MEC ainda neste ano. Dessa forma, haverá a possibilidade de inclusão da temática da proteção dos dados pessoais nas escolas, com vistas a formar cidadãos para uma vida cada vez mais digital e aptos a extrair os benefícios do uso das tecnologias no nosso dia a dia. Também estarão mais cientes dos riscos que elas representam para a nossa privacidade.

O fato é que são inúmeros os desafios a serem enfrentados pela ANPD, a qual é composta por profissionais extremamente competentes e comprometidos com a longa caminhada para a disseminação dessa cultura para que o Brasil possa ter uma sociedade que conheça e respeite o direito fundamental à proteção de dados pessoais [8]. Assim, por ser um direito que transcende a nossa individualidade, com a garantia da proteção de nossos dados, teremos uma sociedade mais igualitária, mais justa, mais livre e mais democrática.

[1] Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=0900001680078b37. Acesso em 24 out. 2021.

[2] UNIÃO EUROPEIA. Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, de 24 de outubro de 1995. Disponível em: https://www.ipvc.pt/wp-content/uploads/2021/01/Directiva-n.%C2%BA-95_46_CE-do-Parlamento-Europeu-e-do-Conselho-de-24-de-outubro-de-1995.pdf. Acesso em 24 out. 2021.

[3] REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 27 de abril de 2016. Jornal Oficial da União Europeia. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679. Acesso em: 24 out. 2021.

[4] Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/cresce-o-uso-de-internet-durante-a-pandemia-e-numero-de-usuarios-no-brasil-chega-a-152-milhoes-e-o-que-aponta-pesquisa-do-cetic-br/. Acesso em: 27 out. 2021.

[5] BRASIL. Decreto 10.474, de 26 de agosto de 2020. Publicado em: 27.8.2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.474-de-26-de-agosto-de-2020-274389226. Acesso em: 24 out. 2021.

[6] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decretos-de-5-de-novembro-de-2020-286734594. Acesso em: 24 out. 2021.

[7] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[8] A título de informação, no dia 20 de outubro de 2021, o Senado Federal aprovou a PEC 17/20, que inclui a proteção de dados pessoais no rol dos direitos e garantias fundamentais, bem como passa a ser matéria de competência legislativa privativa da União Federal. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/senado-federal-aprova-proposta-de-emenda-a-constituicao-17-pec-17-2019-que-inclui-a-protecao-de-dados-pessoais-no-rol-de-direitos-e-garantias-fundamentais. Acesso em: 24 out. 2021.

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